Desculpas para as nossas culpas
É já noite avançada de domingo e passei quase todo o dia a trabalhar em frente ao computador. O sofá chama-me. Na 2 passa um filme acerca da importância de uma bicicleta na vida de um chinês. Estou cansado. No entanto lembro-me do comentário da Cristiana a queixar-se da minha falta para com este blog. Tenho que escrever, tem de ser.
Devo-o ao blog e também à Cristiana. Uma vez mais penso no como seria bom uma ligação USB cérebro-word. Eu pensaria e o texto apareceria escrito pelo processador de texto, de uma forma automática, com seria bom. Mas não, vivemos ainda nesta era rústica. Ainda temos de teclar. Ainda há-de de vir o tempo em que os poetas dirão: Eu ainda sou do tempo em que se teclava, como os poetas de hoje dizem: eu ainda sou do tempo da caneta. Ponho um lounge a correr na aparelhagem e começo a martelar nas teclas, qual poeta do futuro.
Ora bem, hoje vai-se falar de culpa e desculpa. Vou uma vez mais socorrer-me do meu novo amor: M Kundera:
“A história de Édipo é sobejamente conhecida: tendo encontrado um recém-nascido abandonado, um certo pastor levou-o ao rei Políbio que o criou. Já adulto, Édipo cruzou-se um dia numa estrada de montanha com um carro de cavalos onde viajava um príncipe desconhecido. Gerou-se uma discussão e Édipo matou o príncipe. Mas tarde, desposou a rainha Jocasta e tornou-se rei de Tebas. Não fazia a mínima ideia...” (esta parte é a mais importante) “...que o homem que um dia matara nas montanhas era seu pai e a mulher com quem dormia, sua mãe. E, no entanto, o destino encarniçava-se contra os seus súbitos, cobrindo-os de pragas. Quando Édipo percebeu que o culpado dos seus males era ele, vazou os olhos com alfinetes e, cego para todo o sempre, deixou Tebas.”
Se reparar-mos bem, esta história é muito mais rica que a maior parte das homílias dominicais que se lêem em todas as igrejas do mundo. Esta história é fantástica e ao mesmo tempo perturbadora se começar-mos a questionar-mos. A primeira questão que se coloca de imediato é: será que Édipo fez bem ao vazar os olhos após saber a verdade dos factos? E a segunda vem logo de seguida: Teremos culpa dos nossos actos que praticamos em ignorância?
Se nos tentarmos colocar no lugar de Édipo o que faríamos após sabermos que tínhamos matado o nosso pai e dormido com a nossa mãe? Penso que a maioria resolveria este conflito de uma maneira muito simples. Eu não tinha a possibilidade de saber por isso não sou responsável por estes actos. No entanto, na história, Édipo não sabia que dormia com a própria mãe, mas quando compreende o que lhe tinha acontecido, não se sentiu inocente. “Não pode suportar o espectáculo da sua desgraça que causara com a sua ignorância e vazou os olhos”.
É engraçado perceber como nos deixamos envolver por esta falácia tão simples. Deveria ele sentir-se arrependido ou não? Acontece que nunca colocamos em questão a moralidade dos actos em si. Basicamente ele matou e depois, desposou (presumo eu) à força a rainha de Tebas. É curiosos pensar que se o príncipe não fosse o pai de Édipo e a rainha sua mãe esta história não tinha significado nenhum. Ele mataria, ele violaria e no entanto, à partida, estaria tudo bem.
Curioso é também perceber quantas e quantas vezes fazemos este tipo de raciocínio aplicado às mais variadas situações do nosso dia-a-dia (felizmente não tão dramático como a vida de Édipo). É interessante pensar que uma acção pode ser classificada moralmente conforme as circunstâncias (isto são ainda resquícios da relatividade sistemática da série Na Cauda da Realidade..). Se Édipo respeitasse o que mais tarde Kant denominou por imperativo categórico, não teria matado o pai nem violado a mãe e veria até ao fim da vida (caso não sofresse de cataratas).
Por fim só me ocorre pensar que a nossa ignorância não serve de desculpa para as nossas culpas...