A insociabilidade social de se viver em sociedade
Há uns tempos conheci um tipo muito sábio, sábio no sentido livresco do termo. Sabia muito, era formado em Filosofia e estava a tirar Psicologia e tinha pertencido a uma unidade de tropas especiais. Achei aquela associação interessante, tal como acho neste momento estar a preparar-me para falar sobre moral social (sim, uma vez mais, se tenho uma amante chama-se moral...) e estar a ouvir The Clash. Se calhar devia-me levantar e trocar os The Clash por um Bach, muito mais matemático e propício a altos pensamentos. Mas não vou fazer isso, acho que é destas misturas que por vezes saem ideias interessantes. Mas voltando atrás, essa tal rapaz tinha sempre umas saídas muito sábias, no entanto sempre que expunha uma ideia (que eu achava espantosa) ele terminava sempre por dizer que tinha sido uma citação. Citava tão bem Sócrates ou Platão, como os mais modernos Hegel, Nietzsche, ou mesmo Heidegger ou Satre. Ao princípio aquilo era de admirar, mas com o tempo começou a fartar. Até que eu um dia lhe perguntei se ele não era capaz de expor alguma ideia sem citar ninguém, ao que ele me respondeu: “Meu caro, já está tudo pensado, por isso é melhor não plagiar, mas sim citar...”
Nós temos a sensação de que facilmente podemos ser originais. No entanto, se continuarmos a estudar e a procurar respostas, facilmente nos deparamos que o nosso pensamento original já tinha sido feito por outrem. Isto para dizer que formular um pensamento verdadeiramente original será difícil, no entanto ao ter um pensamento anteriormente descrito pelo menos devemos ter a sensação confortante de que, provavelmente, estamos no bom caminho. E não acredito no conhecimento pleno, os humanos são demasiado limitados para isso. E além do mais, acho que nenhuma desculpa é boa o suficiente para parar de reflectir, no entanto compreendo perfeitamente quem escolha essa via.
Provavelmente o que exporei hoje não será de todo original, mas tenho o prazer de lá ter chegado (se é que cheguei a qualquer sítio).
Todas as pessoas saudáveis possuem um sistema de valores. Por exemplo, matar não é bom (embora este conceito varie de situação para situação, há que aceite a pena de morte para os praticante de crimes horrendos). Este sistema de valores que todos possuímos é comum a todos, pelo menos a priori. Depois este sistema de valores pode ser completado ou moldado pela religião, educação ou mesmo condição social.
Outro facto comum a todas as pessoas é a vivência em sociedade. Todas as sociedades também são moldadas por uma série de normas; são as leis. Mas mais que estas leis rígidas, a vivência em sociedade obriga à interacção entre as pessoas. Obriga-as a por vezes a assumiram comportamentos com os quais não concordam, ou por outro lado, a uma inactividade perante situações que discordam. Esta discordância pode ser definida por um contra-senso entre o que se passa (a atitude do Outro) e o seu próprio sistema moral, aquilo que o Eu acharia correcto. No entanto a vivência em sociedade obriga a isto mesmo, por vezes tem de se “suportar” algumas contradições com o nosso sistema moral. A esta contradição, Kant chamou em tempos a isto qualquer coisa como “a insociabilidade social”.
Ora se é impossível de viver em sociedade sem que, por algumas vezes, tenhamos de renegar os nossos princípio morais, então a única maneira de viver em sociedade será de maneira hipócrita e/ou cínica. Quanto a isto não há dúvida possível. No entanto o que fazer com aqueles que “pensam” viver em conformidade consigo próprios, ou aqueles que afirmam que tal vivência hipócrita/cínica não existe? Poderão eles estar cegos e convencidos que são donos de toda a moral (facto impossível, pois como já demonstrei em posts anteriores, não existe uma moral absoluta e por isso ninguém poderá possuir a moral no sentido pleno) ou então é uma tentativa de subjugar o Outro. Convencendo o outro que a minha moral é a correcta estou a formar com ele um grupo, que crescendo, poderá que formar como que um lobbie social com benefícios para aqueles que o seguem. E isto é tão claro se por momentos levantarmos a cabeça do plano teórico e olharmos a sociedade. Por exemplo, a noção moral de justiça social é transversal a todas as pessoas, mas como é óbvio, trabalhador e patrão partilham de perspectivas diferentes, pois estes pertencem a lobbies morais diferentes.
Em resumo, a hipocrisia não será uma falta de alguns humanos sociais, mal algo comum a todos. Além do mais, só com uma postura hipócrita e cínica se poderá viver em sociedade sem que se esteja permanentemente em conflito. Aliás as próprias negociações sociais (ou relações humanas) revelam isto mesmo, eu nego-me a mim próprio, nego as minhas ideias morais para que tenha uma estabilidade social, para que possa viver em sociedade.